O Bom Samaritano Lc 10.25-37

Introdução

Um filósofo persa pagava a um missionário para ler-lhe o Novo Testamento. O missionário tinha grande alegria em prestar este serviço. Certo dia, leu as palavras de Tiago: "A língua, porém, nenhum dos homens é capaz de domar, é mal incontido, carregado de veneno mortífero". "Chega por hoje!" exclamou o persa. E, levantando-se do assento, foi embora. Voltou três meses depois, e explicou sua conduta: "Queria aprender aquele versículo antes de prosseguir a leitura".

A parábola do bom samaritano é uma das histórias bíblicas mais conhecidas. No entanto, ainda contém lições a serem dominadas.

I. Uma Pergunta Acerca da Boa Vizinhança (Lc 10.25-29)


A parábola teve origem no questionamento de um certo doutor (ensinador) da Lei. Ele fez duas perguntas a Jesus; a primeira era agressiva, a segunda, defensiva. Seu propósito era fazer apenas a primeira pergunta, mas viu-se compelido a fazer a segunda.

1. O doutor da Lei na ofensiva. 

"E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo: Mestre, que farei para herdar a vida eterna?" Não se atribua malícia a este homem. É provável que, inspirado pelo orgulho da posição e sabedoria humana, quisesse debater o assunto com o jovem rabino da Galileia, acerca do qual tanto ouvira falar. Respondeu-lhe o Mestre com outra pergunta, a me­lhor forma de testar a seriedade de um questionamento: "Que está escrito na lei? Como lês?" Era como se pergun­tasse: "Você procura realmente informações, ou deseja meramente um debate? Por que perguntar, se a resposta está contida na Lei, da qual você é ensinador oficial?"
O doutor da Lei demonstrou conhecer a resposta, pela rapidez com que recitou: "Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo". A citação do grande mandamento (Mt 22.36,37; Mc 12.30) era prova de que o rabino possuía discernimento e conhecimento espirituais. No entanto, era-lhe necessário mais que conhecimento. Há diferença entre conhecer e praticar.

2. O doutor da Lei na defensiva. 

Às pessoas que o tentavam embaraçar com perguntas manhosas, devolvia Jesus as questões, aplicando-as às suas próprias vidas. Não pou­cos se afastavam com a consciência doendo. Jesus colocou o dedo na ferida quando disse ao doutor da Lei: "Faze isso, e viverás". A flecha atingiu-lhe a consciência, pelo que percebemos no relato bíblico: "Ele, porém, querendo justi­ficar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é o meu próxi­mo?" A expressão "querendo justificar-se" dá-nos a chave do problema do homem. Sem dúvida, perturbava-o algum ato de má vizinhança praticado contra algum membro da sua nação. A auto-justificação é a defesa de uma consciên­cia culpada. Sua pergunta soava como uma confissão: "Não amo a meu próximo; tenho dificuldade em observar este mandamento". O sol não pergunta: "Sobre quem brilha­rei?", pois é de sua natureza o brilhar.' Quem possui espí­rito de perdão não pergunta: "Até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei?" (Mt 18.21). O perdoar é próprio da natureza perdoadora. E aquele movi­do pelo espírito de boa vizinhança e amor não pergunta: "Quem é o meu próximo? A quem serei gentil?" A essência do verdadeiro amor não conhece limites, nem exceções: oferece-se instintivamente a qualquer pessoa cujas necessidades a transformam em objeto de simpatia e benevolência.

II. Uma Ilustração de Boa Vizinhança (Lc 10.30-35)


Conforme já percebemos, o problema do doutor da lei era prático, e não intelectual. Faltava-lhe o espírito de boa vizinhança, ou seja, não era bom vizinho. Para despertá-lo neste sentido, conta-lhe Jesus uma parábola que bem demonstra o espírito de boa vizinhança. Ilustram-se três atitudes:


1. Brutalidade. 

"Descia um homem de Jerusalém para Jericó". Infere-se que este homem era judeu; isto colocaria em relevo a bondade do samaritano, membro de uma raça hereditariamente inimiga dos judeus. "Descia", não somente por ser a posição de Jerusalém mais alta que Jericó, mas porque uma viagem a Jerusalém, a capital, era sempre considerada uma "subida". A estrada passava por uma re­gião rochosa e desolada, referida em Deuteronômio 34.3 e Josué 16.1.
"E caiu nas mãos dos salteadores, os quais, o despoja­ram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio mor­to". Este incidente foi tirado de uma situação real. Um antigo historiador judeu menciona o grande número de salteadores que infestavam as estradas da Palestina naqueles tem­pos. Houve época em que a estrada que levava de Jerusalém a Jericó era chamada Caminho Sangrento, porque muito sangue fora nela derramado.

2. Desumanidade. 

"E ocasionalmente descia pelo mes­mo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo". O sacerdote voltava de Jerusalém, onde acabara de minis­trar no Templo. Ia para Jericó, uma das cidades dos sacer­dotes. Cumprira todas as cerimônias vestido nas vestes sacerdotais, oferecendo os sacrifícios, dizendo as orações e, de modo geral, agindo qual modelo de piedade e santi­dade. Agora, porém, vemo-lo viajando sozinho, revelando a sua verdadeira natureza. Por causa de seu ofício, tinha um padrão de vida elevado, contudo, age como pessoa comum nas circunstâncias. Diferente dos salteadores, não era positivamente brutal; faltava-lhe compaixão, porém.

É natural tenha o sacerdote justificado seu ato de negli­gência, a exemplo do doutor da Lei que interrogara Jesus. Podemos imaginá-lo dizendo consigo mesmo: "Onde hou­ve um ataque, pode haver outro. Melhor continuar a via­gem mais depressa, porque os salteadores podem estar espreitando na vizinhança. É pena que este coitado tenha sofrido assim. Porém, é impossível atender a todas as víti­mas do infortúnio. Além disso, a importância do meu ofí­cio não me deixa aceitar riscos, porque precisam de mim no Templo. E, se me achassem perto do homem, poderia ser acusado de assassiná-lo, o que resultaria num escândalo de grandes proporções. Além disso, o coitado está além do socorro humano. Orarei por ele enquanto estiver andan­do. Ah, vejo um levita lá atrás: ele que cuide do coitado".


"De igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo". Os levitas eram assistentes dos sacerdotes, e somente eles, como descendentes de Arão, podiam ministrar no altar do sacrifício. O levita, por certo, tinha também suas desculpas: "Certamente não tenho a obrigação de arriscar-me numa situação que o próprio sacerdote repudiou. Fosse isto um dever, e ele não teria deixado de cumpri-lo - ele é o meu exemplo. Ajudar o homem em tais circunstâncias seria uma afronta ao meu superior, uma acusação indireta de desumanidade".

3. Compaixão. 

"Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compai­xão". Diferente dos demais, o samaritano não passa de largo, mas sente compaixão pela vítima. Corria o mesmo perigo, e não era um patrício que precisava de ajuda, mas um membro de uma raça hostil. Mas não lhe importava a nacionalidade, merecimento ou religião da vítima. Bastava-lhe que havia ali um homem necessitado. Os vários atos de compaixão (vv. 34,35) são cuidadosamente enumerados para mostrar a eficiência, disposição, abnegação e paciência incansáveis do verdadeiro amor. Outra marca do genuíno amor é a ausência de sentimentalismo. Tudo é feito sem afetação e com bom senso, este demonstrado especialmente nos arranjos financeiros. Não é grande a soma que o samaritano entrega ao hospedeiro, mas suficiente para co­brir as despesas que porventura surgissem. Acrescenta-lhe a promessa de pagar o restante na volta. Não é o ato de alguém que pretender mostrar, ou motivado por uma ale­gria ocasional; seu gesto é próprio de alguém habituado a praticar o bem conforme vão surgindo as oportunidades. Ele age de modo sensato e eficiente. A bondade deve ser guiada pela sabedoria.

Notemos a lição central da parábola: o samaritano não parou para perguntar a si mesmo: "Será este coitado real­mente o meu próximo? Talvez eu deva consultar o sacer­dote no monte Gerizim antes de arriscar-me a cometer um erro" (v. 29). Pelo contrário, havia compaixão no coração deste homem, e a necessidade humana era suficiente para colocá-la em operação. O amor não precisa de instruções escritas para saber como, quando e a quem amar.

III. Uma Exortação à Boa Vizinhança (Lc 10.36,37)


1. O teste. 

"Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?" Notemos que Jesus não responde diretamente à pergunta do doutor da lei. O Senhor responde com outra pergunta: "Quem é o bom vizinho, o que demonstra amor ou o que não demonstra?" Não é uma interrogação que requeira res­posta. Como responder de modo lógico à mãe que pergun­ta: "Qual dos meus filhos deve ser objeto das minhas afei­ções?" A resposta seria: "Seja mãe - e saberá a resposta". Da mesma forma, Jesus não responde à pergunta, mas ao espírito do doutor da lei. Ele o faz entender que sua per­gunta revelava a falta do espírito de humanidade que faz um bom vizinho. Peça a Deus que lhe dê o mesmo espírito que animava o samaritano, e saberá quem é o seu próximo. Perguntar não é necessário: qualquer pessoa necessitada é o seu vizinho.

"E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele". Por que não respondeu claramente: "O samaritano"? Era muito penoso a um rabino judeu exaltar um membro da desprezada raça dos samaritanos, tendo em contrapartida a reprovação a membros do sacerdócio e do povo da Alian­ça. Lição difícil, mas aprendida pelo doutor da lei.

2. A conduta dirigida. 

"Disse, pois, Jesus: Vai, e faze da mesma maneira". Esta exortação adequava-se às neces­sidades pessoais do doutor da lei, em cuja vida existia um grande abismo entre o saber e o fazer - entre conhecer e praticar o dever do amor. O melhor método para se apren­der verdades espirituais é agir à altura delas.

IV. Ensinamentos Práticos


1. "Em perigos de salteadores" (2 Co 11.26). 

"Um homem... caiu nas mãos dos salteadores". Parece ter sido imprudente o homem da parábola. Ninguém, em sã consciência, faria aquela viagem sozinho. Pessoas prudentes sempre viajam em grupos. Talvez estivesse com muita pressa, tipificando as pessoas que andam pelos caminhos da vida sem atentar onde pisam. Há salteadores no caminho - prontos a tirar da juventude o seu amor pelo lar, pela pureza, pelos nobres ideais, pela fé. Sábio é o jovem que se cerca de orientadores expe­rientes.


Assaltantes espreitam o cristão, querendo roubar-lhe a vida de oração, a consagração e a consciência delicada (Jo 10.10,11). O diabo e o mundo são ladrões desejosos por furtar-nos a certeza de nossa vida em Cristo. Teremos segurança, viajando com Cristo e seu povo

2. O pecado de ser inútil. 

Nenhum crime é atribuído ao sacerdote ou ao levita. Reprova-os o Mestre por te­rem "passado de largo". O rico, em Lc 16.19-31, não é condenado por crimes cometidos, mas pelo que deixou de fazer. Nenhum vício destrutivo é menciona­do no julgamento dos bodes e ovelhas (Mt 25.31-46). A acusação é a inutilidade. A ênfase a este pecado é encontrada em todos os ensinamentos de Cristo. A li­ção é ilustrada em termos de negócios (Lc 19.12-22), agricultura (Lc 13.6-9; Jo 15.6) e vida doméstica (Mt 21.18-31).

Nossos pecados de omissão costumam, ser mais nume­rosos que os pecados cometidos.

3. Cristianismo prático (1 Jo 3.17,18). 

Disse alguém com certa dose de sábio humor: "Há muitos bons samaritanos, hoje, que se esquecem do vinho, do óleo, do dinheiro e da vítima. Estão cheios de amor para com o próximo, na con­dição de que este possua boa saúde e uma boa conta no banco. Perdem este amor, no entanto, se o vizinho perde a saúde e o dinheiro. Esquivam-se quando suspeitam que alguma ajuda lhes pode ser pedida e, naturalmente, não oferecem socorro algum. Dizem que este é um mundo sofrido, e que basta a cada um cuidar de si mesmo. Como o sacerdote e o levita, vão adiante, dizendo que por certo uma ambulância virá socorrê-lo e levá-lo ao hospital por conta do município".

Nosso mundo é a estrada de Jericó, cheia de viajantes feridos. E não há modo de passar sem vê-los. Os seguido­res de Jesus, mais que todos, devem destacar-se pelo espí­rito de fraternidade. A falta deste espírito denuncia ao mundo a discrepância entre a profissão e a prática da fé.

Professar a fé, sem verdadeira bondade, é pedra de tro­peço à aceitação de Cristo. O testemunho cristão apoiado por abnegada benevolência é degrau para a fé.

4. Serviço e sacrifício. 

Tanto o sacerdote quanto o levi­ta teriam sido bons vizinhos se isto não lhes custasse nada - se permanecessem intactos seu tempo, dinheiro, conveni­ência e conforto. Milhares há que seriam bons vizinhos nestas condições favoráveis. Seguir o exemplo do Bom Samaritano exige sacrifício. Os altos ideais exigem esfor­ço. Estes, porém, quando inspirados na divina personalida­de de Cristo, recebem dEle a graça para serem alcançados.

Dois indianos, um cristão e um hindu, comentavam a triste situação dos proscritos, a vergonha da injustiça. O hindu, educado, falava eloqüentemente acerca de uma nova era política, em que os proscritos seriam tratados como irmãos. Ao avançarem, encontraram um operário semimorto, deitado ao lado da estrada. Disse o cristão: "Se não o socorrermos, levando-o para a cidade, ele não sobreviverá". O hindu protestou: "Não podemos carre­gar um miserável deste, sujo como está". O cristão, então, levantou o proscrito e, cambaleante, o foi levando para a cidade, enquanto o hindu o seguia, amaldiçoando-lhe o gesto.

Só pelo Espírito de Cristo venceremos o orgulho e pre­conceito, para, a despeito das críticas, seguir o Mestre.

5. Um quadro da redenção. 

A parábola do Bom Samaritano permite-nos vislumbrar o quadro da nossa redenção. A estrada de Jericó representa a estrada da vida; os salteadores, as forças que levam a alma à perdição; o viajante é o homem sem Cristo; o Bom Samaritano, o próprio Cristo; e a hospedaria representa a Igreja.


Bibliografia M. Pearlman

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